Cartas de amor
Leio e releio o poema de Álvaro Campos.Oscilo.Não se devo acreditar ou duvidar.Se acredito,duvido.Duvido porque acredito.Pois,foi ele mesmo quem disse ,ou melhor o seu outro Fernando Pessoa que ele era u fingidor.”Todas as cartas de Amor são ridículas.Não seriam cartas de amor se não fossem ridículas...”
Tenho no meu escritório, a reprodução de uma das telas mais delicadas que conheço.”A mulher que lê” de Jonathas Verner.Uma mulher de pé, lê uma carta.O seu rosto está iluminado pela luz da janela.Seus olhos lêem o que está escrito naquela folha de papel que suas mãos seguram,a boca ligeiramente entreaberta, quase num sorriso.De absorda,ela nem dá conta da cadeira, ao seu lado.Lê de pé.Penso ser capaz de reconstruir os momentos que antecedem esta que o pintor fixou.Pancadas na porta interrompem as rotinas domésticas que a ocupavam.Ela vai abrir e lá estava o carteiro, com uma carta na mão.Pela simples leitura de seu nome no envelope, ele identifica o remetente.Ela toma a carta e , comeste gesto,toca uma mão muito distante.Para isso que servem as cartas de amor.não para dar notícias, não para contar nada,não para repetir as coisas demais sabidas, masque as duas mãos separadas se toquem, ao se tocarem a mesma folha de papel.(...)
Volto a Álvaro Campos.Será esta então a razão dos ridículos da carta de amor?O descompasso entre o que elas dizem e aquilo que elas realmente desejam realizar está sempre antes e depois da palavra escrita:Ela quer realizar aquilo que a separação proíbe : O abraço!.Quem quer que tente entender uma carta de amor pela análise da escritura estará sempre fora do lugar,pois o que ela é o que não está ali,o que está ausente. Qualquer carta de amor , não importa o que encontre nela escrito,só fala do desejo a dor da ausência , a nostalgia pelo reencontro.
Aquela carta fez tudo parar.A mulher fecha a porta e caminha pela casa sem nada ver, buscando uma coisa , uma luz apenas , o lugar onde as palavras ficarão luminosas.Que lhe importa a cadeira?Esqueceu-se de que está grávida.Seus olhos caminham pelas palavras que saíram das mesmas mãos que abraçavam.Seu corpo está suspenso naquele momento mágico de carinho impossível que aquele pequeno pedaço de papel abriu no tempo do seu cotidiano.
Uma carta de amor é um papel que liga duas solidões.A mulher está só.Se há outras pessoas na casa , ela os deixou .Bem pode ser que as coisas que estão nela escrita não sejam nenhum segredo,que possam ser contadas á todos.Mas, para que as cartas sejam de amor ela têm que ser lida em solidão.Como se o amante estivesse dizendo:”Escrevo para que você fique sozinha...”È este ato de leitura solitária que estabelece a cumplicidade. Pois, foi da solidão, que a carta nasceu.A carta de amor é objeto que o amante fez para tornar suportável seu abandono.
“Ainda bem que telefone existe”retrucarão os namorados modernos, que não têm de viver amor no espaço da ausências.Engano.Um telefona,não é uma carta falada.Pois lhe falta o essencial:O silêncio da solidão, a calma da caneta pousada sobre a mesa que espera e escolhe pensamentos e palavras.O telefone põe a solidão a perder.Num telefonema a gente nunca diz aquilo que se diria numa carta.Por exemplo:”Eu ia andando pela rua ,quando de repente , vi um ipê rosa florido que me fez lembrar aquela vez...”ou “Relendo os poemas de Neruda encontrei este que imagino, você gostará de ler...”
A diferença entre a carta de amor e o telefone é impositivo .A conversa têm de acontecer naquele momento.Falta-lhe o ingrediente essencial da palavra que é dita sem esperar resposta.E ,uma vez terminada, os dois amantes estão de mãos vazias.
A carta é paciente.Guarda as palavras.E depois de lida ,poderia ser relida, ou simplesmente acariciada.Uma carta contra o rosto poderá haver coisa mais terna .Uma carta de amor é mais que uma mensagem.Mesmo antes lida , ainda dentro do envelope fechado ,têm a qualidade de um sacramente:presença sensível de uma felicidade invisível(...)
Foi então que o quadro de Verneer me fez a cena que as cartas escondem .E a mulher com uma carta na mão e uma criança na barriga?Ela bem que poderia ser Mileva , grávida de uma filha ilegítima , que foi dada para a doação , e sobre quem nada sabe .A criança foi dada .Mas, as cartas foram guardadas.E as razões poderiam ter uma pessoa para guardar cartas ridículas ?O seu rosto absordo e os lábios entreabertos nos dão a resposta para aqueles que amam as ridículas cartas de amor são sempre sublimes.
Volto ao poema de Àlvaro Campos.
Afinal,
Só as criaturas que nunca escreveram cartas de amor.
São ridículas.
(Alves,Rubem.O Retorno e o Terno.Campinas.SP 24 ED.2003)
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